Por Marco Antônio Sousa Alves/Subcoordenador do Projeto de Extensão RE-HABITARE/UFMG

Não é de hoje que o ser humano sonha com uma vida segura e organizada de maneira eficiente, em um ambiente confortável, moldado para atender às suas necessidades e desejos. Esse sonho humano passa geralmente por uma reflexão sobre a organização urbana e por uma série de construções utópicas de cidades. Não é diferente nos dias atuais. A emergência de novas tecnologias está intimamente associada a novos projetos urbanos, como as chamadas smart cities.

Smart city ou “cidade inteligente” é o nome dado ao emprego integrado de tecnologias da informação e da comunicação para trazer mais eficiência no uso dos recursos, mobilidade e serviços de uma cidade, permitindo administrar hospitais, iluminação pública, transportes, tratamento de água, coleta de lixo, segurança pública e outras atividades. O objetivo declarado consiste em oferecer maior bem-estar por meio de uma experiência mais confortável, eficiente e segura da cidade, com um controle mais inteligente dos fluxos e uma securitização generalizada. O sonho mobilizado aqui consiste na construção de uma vida social cada vez mais produtiva e harmônica, com o mínimo de perda, de desperdício e de prejuízos.

A noção de smart city é extremamente recente, remontando ao início do século XXI, quando a ideia de uma “internet das coisas” (internet of things – IoT) começou a ganhar forma, apontando para uma experiência de digitalização e conexão global capaz de ultrapassar o espaço restrito da tela dos computadores para se estender às coisas em geral e ao espaço urbano. Em suma, a cidade inteligente nasce da possibilidade de grandes volumes de dados serem produzidos incessantemente por seus habitantes, infraestruturas e serviços, por meio de uma arquitetura de rede de conexão sem fio abarcante e fiável, etiquetas digitais geolocalizadas disseminadas nos mais variados objetos, sistemas de filtragem e tratamento do fluxo de dados e uso de realidade aumentada visando oferecer uma experiência contextual enriquecida. Em posse desse grande volume de dados e das novas ferramentas da tecnologia da informação, a organização urbana passa a ser concebida como um espaço construído de maneira automatizada e em tempo real, ajustando os fluxos e regulando diversas situações: a rede de transportes, os sinais de trânsito, a distribuição de energia, o policiamento, etc.

As grandes metrópoles do mundo já vêm travando entre si uma intensa competição no sentido de assumir a imagem de cidade global, criativa e conectada, apta a atrair investimentos, empresas e pessoas qualificadas. No domínio da segurança pública, por exemplo, encontramos diversas iniciativas, como o Centro de Operações que foi implementado no Rio de Janeiro para fins securitários durante os Jogos Olímpicos de 2016 e que permanece em funcionamento, como um “legado” para a cidade. Outros projetos experimentais mais ousados e abarcantes vêm sendo desenvolvidos, envolvendo a criação exnihilo de novos espaços urbanos, em geral conduzidos por consórcios privados e voltados para gigantescas zonas residenciais luxuosas, como vemos em Abu Dhabi (Masdar), na Coréia do Sul (Songdo), nos Estados Unidos (Peña Station NEXT e Babcock Ranch) e no Japão (Fujisawa Smart Town). Nesses projetos em andamento, sensores e câmeras monitoram diversas atividades, carros automáticos circulam pelas ruas, drones atendem chamados de emergência e milhares de objetos com etiquetas digitais conectam-se de modo a mandar informações e conformarem um ambiente cada vez mais adaptado, climatizado, eficiente, seguro e confortável. Em suma, as cidades inteligentes constituem a maior utopia urbana contemporânea, a imagem da urbe como um grande e eficiente robô, o velho sonho de uma vida melhor permitida pelo avanço ilimitado da tecnologia.
Perspectivas críticas, contudo, apontam para o fato de que esse sonho pode, talvez, converter-se em um grande pesadelo. Nessas “cidades inteligentes”, somos tratados basicamente como consumidores ou usuários. Raramente somos vistos como cidadãos, no sentido de sujeitos livres que podem tomar parte nas decisões coletivas. A governamentalidade algorítmica esvazia em grande medida o campo da política, elimina o debate público e procura solucionar os problemas, incluindo a organização urbana, em termos apenas de eficiência, inovação e segurança. Trata-se de uma espécie de nova tecnocracia digital que reaviva o sonho de resolver o problema da política por meio da ciência e da tecnologia, substituindo a deliberação pelo cálculo. No lugar do árduo e lento trabalho de construção democrática de uma vida em
comum, a solução rápida e eficiente das novas máquinas inteligentes.

A tecnologia muitas vezes oferece aquilo que acreditamos que queremos, ou que queremos acreditar que queremos. Jogando com as palavras, podemos dizer que a “inteligência” dessa cidade sonhada talvez seja mais da ordem da esperteza, algo mais próximo da malandragem, da astúcia ou da capacidade de obter resultados vantajosos em curto prazo, mas sem necessariamente ser acompanhado de uma inteligência mais abrangente. A expressão inglesa smart city pode, aliás, ser perfeitamente traduzida por “cidade esperta”. O habitante dessa nova utopia de cidade parece mais propriamente um espertalhão hi-tech teleguiado, um consumidor que abriu mão de sua liberdade para viver confortavelmente.

Talvez as recentes tecnologias da informação e da comunicação estejam apontando para outro tipo de experiência urbana, que realiza alguns sonhos associados ao conforto, à segurança e à eficiência, mas traz consigo uma série de novos desafios e problemas até então insuspeitos. Ao invés de incentivar o compartilhamento do comum, a livre circulação e a sensibilidade à alteridade, a smart city privilegia o espaço personalizado, o comportamento dirigido e a repetição do mesmo. Podemos até viver confortavelmente neste mundo moldado para cada um de nós, mas pagamos caro por essas facilidades. Talvez estejamos sacrificando nossa liberdade, no sentido de uma ação autônoma, espontânea, deliberada, refletida, capaz de transgredir ao que é dado e resistir ao que é imposto, trilhando assim novos e imprevisíveis caminhos.

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