Por Victória de Tolledo (Bolsista do Projeto de Extensão RE-HABITARE)

24 de outubro de 2018

Os centros das grandes cidades recebem cada vez mais investimento em termos de infraestrutura. E, assim, tornam-se atrativas para o capital imobiliário e um impedimento para aqueles que não possuem altas rendas e desejam usufruir dos seus benefícios. Isso significa que a população pobre é expulsa, direta ou indiretamente, para áreas periféricas. Como ação de resistência, diversos movimentos sociais, ou mesmo indivíduos de maneira espontânea, passaram a ocupar prédios que não cumprem sua função social no centro.

Para entender melhor essa tendência, conversamos Edinho, morador da Ocupação Carolina Maria de Jesus, no centro de Belo Horizonte.

  1. O que leva as pessoas a ocuparem áreas centrais?

O que leva as pessoas a fazerem ocupação, na verdade: a necessidade delas por moradia. Então, hoje a gente tem um quadro no Brasil em que temos mais de 6 milhões de pessoas sem casa, esse é o déficit habitacional. Isso é o que o Estado estipula através das pesquisas e de estudos, o que ele consegue identificar da forma institucional, mas na prática a gente sabe que é bem mais. Inclusive, esses dados nem sempre estão atualizados – os últimos dados que a gente tem são de 2009 da Fundação João Pinheiro, e depois alguns dados “meio lá, meio cá”, de 2013, outros de 2016, sem chegar em um número exato. A gente sabe que depois da crise, principalmente depois de 2014, depois que acabou a questão da construção civil dos estádios, com a Copa do Mundo, deu uma baixa no mercado imobiliário. Sabemos também que começaram a diminuir os investimentos no Projeto Habitacional “Minha Casa, Minha Vida”. Então, o déficit habitacional que ainda era combatido em mais ou menos 2% ao ano, começou a ter esse valor reduzido também, o que significa que ele hoje cresceu ainda mais. Ou seja: nos últimos 9 anos de “Minha Casa Minha Vida”, o déficit habitacional que era de 6,2% (se eu não me engano) em 2009, hoje é de 6,4%. Mesmo com 9 anos de programa fazendo casas, não se consegue superar o que que é o déficit habitacional.

Outra questão sobre o Minha Casa, Minha Vida é que ele atende mais as empresas, mais as construtoras do que as pessoas pobres. Por isso, fazem um negócio que é sem estrutura para as pessoas morarem, sem comércio perto, sem uma unidade básica de saúde, escola, precarizado. E ai o tráfico toma conta, até porque não tem uma vigilância do Estado. As famílias acabam sendo expulsas ou desistindo desses locais. Então, as pessoas continuam com essa necessidade de morar, o que as leva a ocupar, a conseguir casa de uma maneira alternativa que não é a fila institucional do Estado.

O fato de ocupar o centro é uma decisão mais política, que é a questão de ocupar a cidade e de ter direito à cidade de fato, porque enquanto a gente não tiver uma reforma urbana que vai centralizar as coisas, que vai levar a universidade para a periferia, que vai levar parques, praças, essas coisas que estão concentradas no centro, ocupa-se o centro. É politicamente acessar a cidade. Hoje os moradores da Carolina têm mais acesso a esses espaços por ocuparem o centro. Além da visibilidade que a gente tem como movimento de estar em um lugar de grande movimentação, de dificultar um despejo. Trata-se de um questão política.

2. É possível abrigar no centro todas as famílias sem casa de Belo Horizonte?

No centro, não. Mas o que as pessoas precisam de fato é de uma moradia, nem todas precisam do centro. Inclusive algumas delas dependem do bairro, e algumas precisam de um espaço maior, de um lote. Cada pessoa tem sua individualidade. Então quando a gente fala de socialismo e reforma urbana, que são duas coisas que estão na planilha do MLB [Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas], estamos falando de respeitar as diferenças das pessoas e de suprir as necessidades de cada um. A gente sabe também precisamos descentralizar as coisas, levar mais coisas para a periferia, por exemplo.

Mas nós sabemos que existem vários prédios abandonados. Em Belo Horizonte, segundo dados da própria prefeitura, há mais de 40 prédios abandonados. Caberia muitas famílias, mas não todas. Mas é a frase que os movimentos de moradia sempre usam “há mais casa sem gente, do que gente sem casa”: mais imóveis abandonados, no centro e nas periferias, do que pessoas sem casa no país. Ou seja, não é falta de ter meios para resolver o problema, porque se há vontade política, é possível transformar o que já existe em moradia. Não seria necessário construir do zero, buscar licitação, terreno para isso.

3. Historicamente, as ocupações em Belo Horizonte tendiam a ser em regiões periféricas. Porém, nos últimos anos vimos as Ocupações Carolina, Zezeu Ribeiro, Vicentão e outras surgirem nas áreas centrais. Essa mudança se deu em decorrência de quê?

A decisão de retomar o centro foi uma decisão política e de uma conjuntura repressiva. Na periferia uma ocupação é muito mais frágil: você chega, coloca a barraca de lona, o que facilita a derrubada. Aqui é um prédio, com paredes, o que estrategicamente fez valer a pena ter tomado essa decisão. No entanto, em BH é muito comum que as ocupações sejam horizontais, por um estilo de vida das próprias pessoas, elas querem plantar, ter quintais, um lugar para as crianças brincarem. Os terrenos que têm esses espaços disponíveis são nas periferias, no Barreiro, na Regional Norte, não no centro. Além disso, é onde está o povo também. A maior parte das ocupações, mesmo as que surgem de forma espontânea, surgem pela necessidade, e a pessoa que está com necessidade está onde?

Então, é isso: vimos prédios ocupados no centro, até por moradores de rua, chamados de “depredados” pela mídia que quer criminalizar os movimentos, mas em geral as pessoas o lugar que as pessoas moram de aluguel, passam apertado mesmo, é nas periferias. A pessoa que mora no centro de aluguel não está comparativamente tão necessitada. E é na periferia que as pessoas conseguem muitas vezes enxergar isso: você paga aluguel e vê um terreno gigante do seu lado, você vai e ocupa.

4. Em relação a uma repressão policial, quais são os benefícios e prejuízos de ocupar o centro?

Tem prós e contras. Em um terreno você está exposto, então o cerco policial acaba nos encurralando, em uma situação muito frágil, e a gente sabe que a polícias reprime a população pobre. Lá na periferia não tem visibilidade nenhuma, também. Se cercarem a rua, não passa ninguém. Enquanto isso, no centro, se a mídia não aparece têm milhares de pessoas passando na rua. Nesse sentido as condições de enfrentamento são melhores.

Por outro lado, no centro você está dentro de um prédio, e você não deixa de estar encurralado, a evacuação é mais difícil. Por isso as famílias têm que ser bem orientadas, com disciplina. Repressão vai ter em qualquer lugar.

5. Ainda na questão de oposição externa, vocês já tiveram problemas com vizinhos ou com o mercado imobiliário?

Já. A ocupação na mídia é uma coisa muito criminalizada, o que faz a população se virar contra a população pobre, acreditando que o nosso irmão é nosso inimigo. E as próprias pessoas consideram as ocupações urbanas um inimigo imobiliário, já que acreditam que caso tenha uma ocupação do lado, a casa deles vai desvalorizar, mesmo que ela não tenha nem intenção de vender a casa. E essa desvalorização é falsa, porque geralmente o terreno ocupado estava vazio, e sabemos para o que terrenos vazios funcionam: desova de corpos, tráfico de drogas… Quando há moradia, famílias, as coisas mudam, torna-se um lugar mais seguro.

Por isso, fazemos um trabalho de ganhar a vizinhança também, conseguimos dialogar e eles próprios enxergam que a situação não é essa, e essa situação se ameniza.

Conta o mercado imobiliário, é isso: temos guerra declarado com burgueses, com latifundiário, então eles sabem que a gente não aceita as imposições deles. Por exemplo, o dono do prédio que nós ocupamos não vai fazer nada de “mão beijada”. Na própria Carolina [Ocupação Carolina Maria de Jesus], o judiciário foi muito pressionado. E quem está pagando, escolhe a música. Então nós tínhamos mesmo que resistir.

6. Qual é o modelo de regularização fundiária defendida pelo MLB?

Nós defendemos sobretudo o direito à moradia e a abolição da propriedade privada. O que a gente mais vê são terras públicas indo parar na mão de latifundiários, de grileiros, através de concessão pública. E não se constrói nada, e vemos a ação do mercado imobiliário. Nós defendemos então uma Reforma Urbana e uma Reforma Agrária. É socializar as terras. Se ela não está servindo para nada além da especulação imobiliária, que ela seja destinada à moradia, à cultura, à saúde, à educação, que possa ser construída de maneira planejada, com ajuda do Estado.

Nas ocupações que fazemos o seguinte: a primeira coisa que nós colocamos é que não pode ter comércio, o que significa que não pode ter um supermercado lá dentro. Se uma pessoa tem um supermercado, ela não precisa morar em uma ocupação.

Temos também um entrave com o tráfico. Proibimos a entrada do tráfico nas ocupações, aqui dentro não tem. Priorizamos também que não se degrade a natureza, que seja sustentável, que tenha áreas verdes, às vezes sem asfalto, plantio de árvores nas ruas.

A divisão dos lotes é feito por meio de pontuação. A pessoa que cumpre mais tarefas, que ajuda mais no coletivo vai ter prioridade. Se a pessoa tem um problema de saúde, de locomoção, ela vai ter um lote que atenda as necessidades dela.

Nosso modelo é esse então, uma regularização fundiária que atenda aos interesses do coletivo, acabe com a propriedade privada e respeite as diferenças de cada pessoa.

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