A troca, que é o fundamento do comércio e de todo o metabolismo social e biológico, faz do espaço urbano o seu lugar. A proximidade, a vizinhança e o convívio estão no inventário das riquezas do modo de vida urbano, o qual geógrafos, demógrafos e estatísticos não raramente vinculam à noção de aglomeração. Estão aí a fortuna e a potência de uma solidariedade involuntária, a partir da qual os diferentes se encontram, os contrários se tocam, os trabalhos se completam e a vida se compartilha. Reconhecer essas faculdades da vida urbana não implica em desfazer-se da crítica ao que se passa nas cidades e metrópoles ao redor do mundo.

A forma do encontro, da complementariedade, da aglomeração e da concentração tornou-se serva da acumulação de riquezas durante o processo de modernização. Um regime econômico fundado na privação criou as condições que explicam o aumento dos sem-teto, o crescimento das favelas, a multiplicação dos moradores de rua e o adensamento da horda de transeuntes e passageiros que perdem horas de seus dias em deslocamentos exaustivos e vazios de sentido próprio.

Para esses, a aglomeração é sinônimo de fadiga, das interdições e da estratificação social. Ao mesmo tempo em que o urbano é a concentração de riqueza, ele é também a concentração da pobreza: enquanto reúne e agrega, ele é exclusão e segregação socioespacial simultaneamente. Essa é uma das contradições entre a forma e os conteúdos do urbano. Seja tomado em suas potencialidades, seja apreendido por sua face crítica, é o sentido e o fundamento da vida urbana que são postos em questão diante das medidas sanitárias que impõem o distanciamento físico e a separação dos corpos. Nesse contexto, forma urbana e profilaxia social entram em conflito, e esse conflito é agravado pelo tempo rápido dos negócios e da circulação da riqueza.

A captura da vida urbana pelo tempo irremediável da acumulação e pela busca incessante do lucro impõe o princípio da cidade que não para. No Brasil, essa pulsão econômica antissocial parece estar vencendo em alguns lugares, especialmente nos espaços da pobreza. Essa realidade tem transformado algumas áreas que se mantiveram inicialmente protegidas da chegada do vírus ao país em verdadeiras estufas da pandemia.

A aversão ao tempo lento e a precariedade impiedosamente rentável das condições de trabalho, combinadas ao novo ingrediente virulento, converteram a forma do encontro e da aglomeração em um reprovável e potente sistema urbano de contaminação verde e amarelo. O que resta do urbano em tempos de pandemia capitalista por aqui é oferecido sem chance de recusa aos condenados pelo mundo do trabalho: eis o avesso do direito à cidade.

 

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